Curiosidades
sobre o Aqueduto das Aguas Livres
Geometria Divina, símbolos misteriosos,
lendas, homicídios em série. Obras de engenharia notáveis e conflitos
memoráveis entre os maiores arquitetos do século XVIII. O Aqueduto das Águas
Livres - em todos os seus 58 quilómetros de troços,
de Belas às Amoreiras - é um monumento
"ao melhor e ao pior" dos homens.
O troço mais conhecido, sobre o vale de
Alcântara, tem o maior arco em ogiva de pedra do mundo!
Caminhamos sobre o vale de Alcântara,
num dia de calor tórrido, mas a sombra do gigante de pedra protege-nos. A
marcha é lenta porque, a cada passo, a nossa "guia" tem uma história
para contar. O Bairro da Serafina homenageia "uma estalajadeira, com
talento para a cozinha", que alimentou sucessivas gerações de mestres e
operários da obra do aqueduto. A ogiva central "é a maior do mundo -
estamos no Guiness Book por causa disso - mas conta a lenda que é fechada
unicamente por três pedras, que só um som pode apartar".
Margarida Ruas não sabe que som é esse. Provavelmente
será das poucas questões sobre o Aqueduto das Águas Livres para as quais não
tem resposta. E se a tivesse guardaria o segredo até ao fim dos seus dias.
Especialista em comunicação política, criadora do extinto Contra Informação, da
RTP, foi durante muitos anos diretora do Museu da Água, da EPAL. E deve-se a
ela o facto de os lisboetas poderem voltar a percorrer aquele caminho público,
outrora maldito, devido à memória de um assassino cruel…
Em 1996, quando a empresa a nomeou
diretora de comunicação, com o pelouro do museu, o único espaço visitável em
todo o complexo das Águas Livres era a Estação Elevatória dos Barbadinhos. Numa
semana, abriu ao público um novo museu polinuclear, integrando a passagem de
Alcântara, a Mãe de Água das Amoreiras e o Reservatório da Patriarcal, no
Príncipe Real.
Já não tem responsabilidades diretas no
museu. Mas continua a defender o monumento pelo qual um dia se apaixonou
"perdidamente". Em 2004, os Guardiães do Aqueduto, um grupo que
lidera, conseguiram travar um projeto que previa a demolição de um troço de
dois quilómetros, perto de Belas, para dar lugar a um acesso à CRIL e a um
shopping. Hoje, é a porta-voz de um movimento internacional que quer fazer
daquele monumento - em todos os seus 58 quilómetros de canais - Património da
Humanidade reconhecido pela UNESCO. "É obrigação nossa, dos portugueses,
deixá-lo para a humanidade, tal como foi deixado por todos aqueles fantásticos
mestres e pedreiros, e por todas as vidas que se perderam na construção."
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A nascente de Belas, onde tem início o percurso de
58 km de canais do aqueduto, numa imagem
do arquiteto e músico Emanuel Pimenta |
O sonho de fazer chegar as "águas
livres"a Lisboa - cidade banhada por um rio cuja água é salobra desde
Santarém - começou no último quarto do século XVII, ditando a criação do real
da água - uma espécie de imposto sobre o valor acrescentado aplicado a produtos
como o vinho, a carne e o azeite - para financiar o projeto. Mas só em 1731,
com o alvará régio de D. João V, foram criadas as condições.
O projeto foi entregue a um trio de
notáveis: o italiano Antonio Canevarique, por essa altura, concluia a
construção da Torre da Universidade de Coimbra; o coronel Manuel da Maia que,
anos mais tarde, seria decisivo na reconstrução da Baixa lisboeta após o
terramoto de 1755; e o alemãoJohann Friedrich Ludwig, ligado a obras como o
Convento de Mafra.
Canevari era o mestre entre os mestres.
Mas perdeu o estatuto ao fim de um ano. A sua conceção de uma estrutura
hidráulica acionada por sifões para bombear a água até Lisboa era demasiado
mundana para as aspirações do rei, que governou num dos períodos mais ricos da
história de Portugal, graças ao ouro do Brasil. D. João V queria uma obra que
perdurasse. E em retrospetiva tinha razão porque, do muito que mandou
construir, o aqueduto foi das poucas edificações a escapar ao sismo de 1755.
O mestre português convenceu o rei com o
mais monumental sistema de desnível, que viria a vingar, mas revelou-se
ineficaz na execução: "Manuel da Maia tinha o problema de querer abrir
demasiadas frentes de obra ao mesmo tempo, não conseguindo dar andamento a
nenhuma."
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Obra foi pensada para fazer refletir o mundo exterior na água, através de janelas. |
Obra foi pensada para fazer refletir o
mundo exterior na água, através de janelas.
Em 1736 avançou o engenheiro militar
Custódio Vieira: "Era uma figura notável e um dos nomes mais importantes
da história do aqueduto. Inventou uma estrutura para conseguir transportar os
carrilhões [sinos do Convento] de Mafra. E foi graças a essa estrutura que se
conseguiram erguer também estas colunas". Como o fez, não se sabe ao
certo, porque os planos da maravilha da engenharia viriam a desaparecer, em
1755, entre os escombros do Paço da Ribeira, onde se guardava boa parte dos
documentos mais importantes da capital.
Custódio Vieira ainda concluiu o Arco
Grande, em 1744, mas morreu nesse mesmo ano, já não assistindo à inauguração do
Aqueduto , em 1748. Seriam necessárias várias décadas ainda, até que, às portas
do XIX, a obra cumprisse em pleno a missão de abastecer Lisboa, que depois
manteve até ao fim da sua "vida funcional", em 1964.
"A história do aqueduto
consubstancia o melhor e o pior de nós portugueses", diz Margarida Ruas.
"O melhor porque é uma obra notável, feita - tal como afirmavam-, dando o
melhor de nós para chegar a Deus, para construir a beleza máxima e a pureza
máxima. O pior porque, na realidade, as lutas internas foram tão grandes, entre
os mestres, entre os donos da obra, que acabou por ser solucionada passados
quase cem anos com a intervenção do patriarcado."
Faz sentido que, a determinada altura,
"um padre tenha também sido o coordenador da obra". É que, explica, o
aqueduto está entre alguns monumentos do mundo, "tal como as pirâmides de
Gizé, no Egito, tal como Notre Dame, em Paris", construídos de acordo com
a geometria sagrada: a crença de que a geometria e a matemática estão
intimamente ligadas a toda a realidade que nos rodeia. "Na geometria
sagrada partimos do caos para a ordem. E para isso foi preciso dividir por
números, os chamados números-ideia". O homem é "o agente
integrador". E no caso do aqueduto, "único no mundo", essa
integração "dá-se através de uma dimensão imaterial. Quando passeamos nas
nascentes, com a água de um lado e do outro, as janelas refletem todo o mundo
exterior".
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Margarida Ruas reabriu o Aqueduto aos lisboetas e é uma das suas “guardiãs” |
A dimensão mística desta obra de homens
imperfeitos não deixa ninguém indiferente. O luso-brasileiro Emanuel Dimas
Pimenta,especialista em arquitetura espacial e membro do comité técnico desta
área no Comité Norte-Americano de Astronáutica e Aeronáutica, não se considera
"nada esotérico". Mas recentemente publicou o ensaio: O Mistério das
Águas Livres - O mágico aqueduto de Lisboa. "O aqueduto foi construído num
período em que estavam em voga os universos esotéricos, como o universo
Rosacruz. E historicamente ilustra um período do pensamento europeu de que
poucas pessoas se dão conta", explica ao DN.
As próprias pedras do monumento
remetem-nos para um universo misterioso. Várias têm símbolos que facilmente
associamos à maçonaria, a ordem dos pedreiros livres. José Medeiros,
historiador e presidente da Academia dos Saberes, esclarece que a maioria deles
não eram mais do que "marcas de obra deixadas aos pedreiros pelos
canteiros, que trabalhavam a pedra, algumas das quais acabaram por ser
incorporadas pela maçonaria especulativa, ganhando significados completamente
diferentes". Mas há também "símbolos especiais, de consagração, como
o círculo com a cruz no meio e os três planos com a cruz em cima".
"O pancadas", o sociopata que
matou dezenas por uma moeda Diogo Alves, mais conhecido pela alcunha
de "O Pancadas", ficou para a história como um dos piores sociopatas
portugueses. Roubava mulheres no passeio público do Aqueduto, em Alcântara e,
"por uma moeda", lançava dezenas de vítimas para a morte.
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O processo de Diogo Alves está em exposição na Torre do Tombo |
"Era um assassino em série. Era um
homem de dupla personalidade. Durante o dia era boieiro e, ao que parece, de um
profissionalismo extremo, e à noite transformava-se no pior dos
assassinos", conta Margarida Ruas.
O modus operandi do homicida era sempre
o mesmo: esperava pela passagem das lavadeiras de Caneças, "que vinham ou
buscar ou entregar as roupas aos aristocratas em Lisboa", roubava-as e
lançava-as do viaduto abaixo.
Inicialmente, as mortes chegaram a ser
atribuídas a uma estranha vaga de suicídios. Mas quando as vítimas começaram a
totalizar várias dezenas as autoridades perceberam que estavam a lidar com um
homicida em série e o caminho público sobre o aqueduto foi interdito.
Diogo Alves nunca chegou a ser apanhado
por estes crimes. Viria a ser detido, sim, pela morte da família de um médico,
na Rua das Flores, durante um assalto conduzido por ele e por vários membros do
seu gangue. Foi por este último crime que acabou por ser condenado e executado,
em 1841. O processo que conduziu à sua condenação está atualmente em exposição
na Torre do Tombo, em Lisboa.
Há uma lenda urbana que o identifica
como o último condenado à morte em Portugal. Na realidade, esta pena foi
abolida mais de uma década depois, em 1852, por D. Maria - mas apenas para
crimes políticos - só sendo abolida para crimes civis em 1867, já no reinado de
D. Luís. Vários homens foram ainda condenados e executados depois do "Pancadas".
Mas o seu lugar na história ficou ainda assim assegurado, pelos piores motivos.
Aliás, por ironia do destino, entre
centenas de figuras históricas ligadas ao aqueduto, Diogo Alves é mesmo a única
cujo rosto podemos ainda contemplar. A sua cabeça foi decepada após a execução,
a fim de ser estudada pela comunidade científica, e continua ainda conservada
em formol no teatro Anatómico da Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa.
Galego de nascença, "O
Pancadas" - pela gravidade dos seus crimes - acabaria por contribuir para
uma animosidade, que durou décadas, contra os imigrantes da Galiza, que não só
eram os aguadeiros de Lisboa - antes do aqueduto - como foram os primeiros
bombeiros da cidade.
(*) Amabilidade
de Lara Raquel Caldeira Ferraz